sexta-feira, 1 de setembro de 2017

A REPÚBLICA DAS ABELHAS


              Sucede com elas como com todas as realidades profundas. É necessário aprender observá-las. Um habitante dum outro planeta que visse os homens ir e vir quase insensivelmente pelas ruas, amontoar-se à roda de certos edifícios em em certos lugares, esperar não se sabe o que, sem movimento aparente, no fundo das suas casas, concluiria também que eram inertes e miseráveis. Não é senão depois de muito tempo que se destrincha a múltipla atividade desta inércia. 
              Na verdade, cada um destes pequenos corpos quase imóveis trabalha sem cessar e exerce um mister diferente. Nenhum conhece o repouso e aqueles que, por exemplo, parecem mais entorpecidos e pendem de encontro aos vidros em cachos mortos, tem a tarefa mais misteriosa e mais fatigante, formam e segregam a cera. Mas depressa encontraremos a pormenorização desta atividade unânime. Por agora, basta chamar a atenção sobre o caráter especial da natureza da abelha que explica a acumulação extraordinária deste trabalho confuso. A abelha é antes de tudo, e ainda mais que a formiga, um ser de multidão. Não pode viver senão em monte. Quando sai do cortiço.tão cheio que tem que romper, a golpes de cabeça, uma passagem através da muralha viva que a rodeia, sai do seu elemento próprio. Mergulha um instante no espaço cheio de flores, como o nadador mergulha no oceano cheio de pérolas, mas sob pena de morte é necessário, que com intervalos regulares torne a vir respirar a multidão, do mesmo modo que o nadador vem respirar o ar. Isolada de víveres abundantes e na temperatura mais favorável, morre ao fim de alguns dias, não de fome ou de frio, mas de solidão. Da acumulação, da cidade evola-se para ela um alimento invisível tão indispensável como o mel. É esta necessidade que é preciso ter em conta para fixar o espírito das leis do cortiço. No cortiço o indivíduo não é nada, não tem senão uma existência condicional. Não é senão um momento indiferente, um órgão alado da espécie. Toda a sua vida é um sacrifício total ao ser inumerável e perpétuo de que ele faz parte. 
                É curioso verificar que não foi sempre assim. Encontram-se ainda hoje os Himenópteros melíferos em todos os estados de civilização progressiva da nossa abelha doméstica. No fundo da escala trabalha só, na miséria, muitas vezes nem sequer vê a sua descendência (os Prosópis,os Coletes, etc.), algumas vezes vive no meio da pequena família que criou (os zangões). Em seguida forma associações temporárias (os Panurgos, Os Dasipodos, os Halictos, etc.) para chegarem enfim de grau em grau à sociedade mais perfeita mas impiedosa dos nossos cortiços, onde o indivíduo é inteiramente absorvido pela república, e onde esta por sua vez é sacrificada regularmente à cidade  abstrata e imortal do futuro. 
                                                                   *   *   *
                Não nos apressemos a tirar destes fatos conclusões aplicáveis à espécie humana. O homem tem a faculdade de não se submeter às leis da natureza; e saber-se se tem ou não razão em usar desta faculdade, é o ponto mais grave e mais obscuro da sua moral. Mas não é menos interessante surpreender a vontade da natureza num mundo diferente. Ora, na evolução dos Himenópteros que são, logo depois do homem, os habitantes deste globo mais favorecidos em relação à inteligência, esta vontade parece muito nítida. Ela tende visivelmente para o melhoramento da espécie, mas mostra ao mesmo tempo que não o quer ou não pode obter senão em detrimento da liberdade, dos direitos e da felicidade do indivíduo. à medida que a sociedade se organiza e se eleva, a vida particular de cada um dos seus membros vê diminuir o seu círculo. Logo que há progresso em qualquer parte, este não resulta senão do sacrifício cada vez mais completo do interesse pessoal ao geral. É preciso primeiro que tudo que cada um renuncie aos vícios, que são atos de independência. Assim, no penúltimo grau de civilização das abelhas, encontram-se os zangões que são ainda semelhantes aos nossos antropófagos. As obreiras adultas andam sem cessar em volta dos ovos para os devorar e a mãe é obrigada a defendê-los encarniçadamente. É necessário em seguida que cada um, depois de se ter desembaraçado dos vícios mais perigosos, adquira um certo número de virtudes cada vez mais penosas. As obreiras dos zangões, por exemplo, não sonham em renunciar ao amor, ao passo que a nossa abelha doméstica vive numa castidade perpétua.  Bem cedo de resto, veremos tudo que ela abandona em troca do bem-estar, da segurança, da perfeição arquitetônica, econômica e política do cortiço, e voltaremos à espantosa evolução dos Himenópteros no capitulo consagrado ao progresso da espécie. 
                                                                       *    *    *
                As abelhas do cortiço que escolhemos despertaram, pois, do seu torpor hibernal. A rainha recomeçou a pôr deste os primeiros dias de fevereiro. As obreiras visitaram as anémonas, os tojos, as violetas, os salgueiros, as aveleiras. Depois a primavera envolveu a terra. Os celeiros e as caves transbordam de mel e de pólen, milhares de abelhas nascem cada dia. Os machos, grandes e pesados, saem das suas vastas células, percorrem os favos, e o empachamento da cidade demasiado próspera torna-se tal que é tarde, quando voltam das flores, centenas de obreiras retardatárias não encontram onde se alojar e são obrigadas a passar a noite à entrada, onde o frio as dizima.
                Uma inquietação percorre todo o povo e a velha rainha agita-se. Sente-se que um destino novo se prepara. Cumpriu ela religiosamente o seu dever de boa criadora, e agora, do dever cumprido nasce a tristeza e a atribulação. Uma força invencível ameaça o seu repouso; vai ser necessário dentro de poucos dias deixar a cidade onde reina. E contudo esta cidade é a sua obra, é ela própria. - Não é rainha no sentido que tem esta palavra entre os homens. Não dá ordens, e está submetida como o último dos seus súditos àquele poder velado e soberanamente sábio, a que chamaremos, enquanto não descobrirmos em que reside, "o espirito do cortiço". Mas é mãe e o único órgão do amor.Fundou-a na incerteza e na pobreza.  Repovoou-a sem cessar com a sua substância e todos que a animam - obreiras,  machos, larvas, ninfas e as jovens princesas  cujo próximo nascimento vai precipitar a sua partida e uma das quais já lhe sucede no pensamento imortal da Espécie - saíram das suas entranhas. 
                "O espírito do cortiço". O que é, e em que se encarna? Não é semelhante ao instinto particular da ave que sabe construir o seu ninho com perfeição e procurar outros céus quando chega o dia da emigração.  Também não é um hábito maquinal da espécie que só procura cegamente viver e que esbarra contra todos os obstáculos do acaso logo que uma circunstância imprevista desorganiza a série dos fenômenos usuais. Pelo contrário, segue passo a passoas circunstâncias onipotentes, como um escravo inteligente e presto, que sabe tirar partido das ordens mais perigosas do seu senhor. 
                 Dispõe impiedosamente, mas com prudência, e como submetido a algum grande dever, das riquezas, da felicidade, da vida de todo um povo alado. Determina dia a dia o número dos nascimentos e põe-no estritamente de acordo o das flores que matizam os campos. Anuncia à rainha a sua queda ou a necessidade da sua partida, obriga-a a dar à luz as ruas rivais, educa-as como rainhas, protege-as contra o ódio político da sua mãe, permite ou proíbe, - conforme a generosidade dos cálices multicolores, a idade da primavera e os perigos prováveis do voo nupcial, - que a primogênita das princesas virgens vá matar nos seus berços as suas jovens irmãs que cantam as canções das rainhas. Outas vezes, quando a estação vai adiantada, quando as horas floridas são menos longas, para fechar a era das revoluções e apressar a volta ao trabalho, dá ordem às próprias obreiras para matar toda a descendência imperial. 
                  Este espírito é prudente e econômico, mas não avarento. Conhece aparentemente, as leis magníficas e um pouco loucas da natureza em tudo que diz respeito ao amor. Assim, durante os dias abundantes de verão, tolera - porque é dentre eles que a rainha que vai nascer escolherá o seu amante - a presença incômoda e empachadora de trezentos ou quatrocentos machos estouvados, desastrados, inutilmente azafamados, pretensiosos, total e escandalosamente, barulhentos, glutões, grosseiros, porcos, insaciáveis, enormes. Mas uma manhã, fecundada a rainha, quando as flores abrem mais tarde e fecham mais cedo, decreta friamente a sua carnificina geral e simultânea. 
                 Determina o trabalho de cada uma das obreiras. Segundo a sua idade, distribui a tarefa às amas que cuidam das larvas e das ninfas, às damas de horror que se ocupam do sustento da rainha e não a perdem de vista, às ventiladoras que com o bater das asas arejam, refrescam ou aquecem o cortiço e apressam a evaporação do mel demasiado carregado de água, às arquitetas, às cereiras, às escultoras que constroem os favos, às forrageiras que vão procurar pelo campo  o néctar das flores que se há de transformar em mel, o pólen que é o alimento das larvas e das ninfas, a cera virgem que serve para calafetar e consolidar os edifícios da cidade, a água e o sal necessários à juventude da nação. Impõe-se a sua tarefa às químicas que asseguram a conservação do mel e lhe instilam com o dardo uma gota de ácido fórmico, às operárias que fecham os alvéolos cujo tesouro já está maduro, às varredoras  que conservam a meticulosa limpeza das ruas e das praças públicas, às necroferas  que levam para longe os cadáveres, às amazonas do corpo da guarda que velam dia e noite pela segurança da entrada, interrogam os transeuntes, conhecem os adolescentes que saem pela primeira vez, afugentam os vagabundos e os ladrões, expulsam os intrusos, atacam em massa os inimigos e, se for necessário, fazem barricadas à entrada. 
                  Enfim, é o "espírito do cortiço" que fixa a hora do grande sacrifício anual ao gênio da espécie - refiro-me ao enxamear - em que um povo inteiro, chegado ao auge da sua prosperidade e do seu poder, abandona subitamente à geração futura todas as suas riquezas, os seus palácios, as suas habitações e os frutos do seu trabalho, para ir procurar ao longe a incerteza e as privações de uma pátria nova. Eis um ato que, consiste ou não, ultrapassa certamente a moral humana. Arruína muitas vezes, empobrece sempre, dispersa com certeza a cidade venturosa para obedecer a uma lei mais alta que a sua própria felicidade. Onde se formula esta lei que está longe de ser fatal e cega como se julga? Onde, em que assembléia, em que conselho, em que esfera comum reside este espírito ao qual todos se submetem e que está ele próprio submetido a um dever heroico e a uma razão sempre dirigida para o futuro? 
                 Acontece com as nossas abelhas como com a maior parte das coisas deste mundo; observamos alguns dos seus hábitos e dizemos: fazem isto, trabalham desta maneira, as suas rainhas nascem deste modo, as obreiras ficam virgens, enxameiam em tal época. Pensamos conhecê-las e não desejamos mais nada. As vemos voar de flor em flor; observamos o vai e vem fremente do cortiço; esta existência parece-nos muito simples, e limitadas como as outras aos cuidados instintivos do alimento e da reprodução. Mas aproximemo-nos, procuraremos ver, e eis a complexidade temerosa dos fenômenos mais naturais, o enigma da inteligência, da vontade, dos destinos, do alvo, dos medos, das coisas, da organização incompreensível do menor ato da vida. 
                   No nosso cortiço, pois, está-se preparando a enxamear,a grande imolação aos deuses exigentes da raça. Obedecendo à ordem do "espirito", que nos parece muito pouco explicável, visto ser exatamente oposta a todos os instintos e a todos os sentimentos da nossa espécie, sessenta a setenta mil abelhas sobre oitenta ou noventa mil da população total, vão abandonar na hora determinada a cidade materna. Não vão partir num momento de angústia, não vão fugir, numa resolução súbita e apressada, duma pátria devastada pela fome, a guerra ou a doença. Não, o exílio é longamente meditado e a hora favorável pacientemente esperada. Se o cortiço está pobre, se tem sido perseguido pelas desgraças da família real, pelas intempéries, pela pilhagem, não o abandonam. Não o deixam senão no apogeu da sua felicidade, quando, após o trabalho fatigante da primavera, o imenso palácio de cera e vinte mil células bem alinhadas, transborda de mel novo e daquela farinha arco-iris que se chama o "pão das abelhas" e que serve para alimentar as larvas e as ninfas.
                  Nunca o cortiço esteve mais belo que na véspera da renúncia heroica.  É para ele a hora sem igual, animada, um pouco febril e contudo serena, da abundância e da alegria plenas. Procuraremos representá-lo, não tal como o vêem as abelhas, porque não podemos imaginar de que forma mágica se refletem os fenômenos nas seis ou sete mil faces dos seus olhos laterais e no tríplice olho ciclópico da sua fronte, mas tal como o veríamos se tivéssemos o seu tamanho. 
                 Do alto duma abobada mais colossal que a de S.Pedro de Roma, descem até ao solo, verticais e paralelas, gigantescas muralhas de cera, construções geométricas, suspensas nas trevas e no vácuo,  e que não se poderia, guardadas as proporções, comparar pela precisão, pela ousadia e pela grandeza, a nenhuma construção humana. 
                 Cada uma destas muralhas, cuja substância está ainda fresca, virginal, argêntica, imaculada, odorífera, é formada por milhares de células e contém víveres suficientes para alimentar todo o povo durante muitas semanas. Aqui  são manchas brilhantes, vermelhas, amarelas,roxas e negras de pólen, fermentos de amor de todas as flores da primavera, acumulado em alvéolos transparentes. Em redor, em compridos e faustosos cortinados de ouro, de pregas rígidas e imóveis, o mel de abril, o mais límpido e transparente, repousa já nos seus vinte mil reservatórios, fechados  com um zelo que não se viola senão nos dias da suprema aflição. 
                  Mais alto o mel de maio amadurece ainda nas suas grandes células abertas, às bordas das quais cortes vigilantes conservam uma corrente incessante de ar.  Ao centro e longe da luz, cujos raios de diamante penetram pela única abertura, na parte mais quente do cortiço, dorme e desperta o futuro. É o domínio real, reservado à rainha e ao seus acólitos; dez mil habitantes aproximadamente, onde repousam os ovos, quinze ou dezesseis mil quartos ocupados pelas larvas, quarenta mil casas habitadas pelas ninfas brancas de quem milhares de amas cuidam. Enfim, coração destes limbos, três, quatro, seis ou doze palácios fechados, proporcionalmente muito vastos, das  princesas adolescentes, que esperam a sua hora, envoltas numa espécie de sudário, imóveis e pálidas, alimentadas nas trevas. 
                  Ora, no dia prescrito pelo "espírito do cortiço" uma parte do povo, estritamente determinada por leis imutáveis e seguras, cede o lugar a estas esperanças ainda sem forma. 
                  Deixam-se na cidade adormecida os machos entre os quais será escolhido o amante real, abelhas muito novas que tratam dos ovos e alguns milhares de obreiras que continuarão a forragear ao longe, guardarão o tesouro acumulado e manterão as tradições morais do cortiço. Porque cada cortiço tem a sua moral particular. Encontram-se alguns muito virtuosos e outros muito pervertidos, e o apicultor imprudente pode corromper um cortiço, fazer-lhe perder o respeito pela propriedade de outrem, incitá-lo à pilhagem, dar-lhe hábitos de conquista e de ociosidade que tornarão temível para as pequenas repúblicas da vizinhança.  Basta que a abelha tenha tido ocasião de verificar que o trabalho  ao longe, entre as flores do campo das quais é necessário visitar centenas para obter uma gota de mel, não é o único nem o mais rápido meio de enriquecer, e que é mais cômodo introduzir-se fraudulentamente nas cidades mal guardadas, ou pela força naquelas que são muito fracas para se defender. Perde logo a noção do dever encantador, mas impiedoso, que faz dela a escrava alada das coroa-las na harmonia nupcial da natureza, e muitas vezes é difícil fazer voltar ao bom caminho um cortiço assim depravado. 
                  Tudo indica que não é a rainha mas o espírito do cortiço que decide do enxamear. Acontece com esta rainha como com os chefes entre os homens; parecem mandar, mas eles próprios obedecem a ordens mais imperiosas e mais misteriosas que as que dão àqueles que lhes estão submetidos. Quando este espírito fixou o momento, é necessário que desde a aurora, talvez desde a véspera ou antevéspera, tenha tornado conhecida a sua resolução porque, apenas o sol bebeu as primeiras gotas de orvalho, nota-se ao redor da cidade zumbidora uma agitação insólita, que raramente engana o apicultor. Dirse-ia mesmo muitas vezes que há excitação, luta, recuo.  Acontece com efeito que durante muitos dias seguidos, uma emoção duradoura e transparente, cresce e descresse sem razão aparente. Formar-se-á neste instante  uma nuvem que nãos não vemos no céu que as abelhas vêem, ou uma dúvida nas  suas consciências? Discutir-se-á num conselho ruidoso a necessidade da partida? Nada sabemos, como também não conhecemos o modo como o espírito do cortiço transmite a sua resolução à chusma. Se é certo que as abelhas comunicam entre si, ignora-se se o fazem à maneira dos homens. Este zumbido perfumado do mel, este frêmito embriagado com os belos dias do verão, que é um dos mais doces prazeres do cultivador de abelhas, este cântico da festa do trabalho  que sobe e desce à roda do cortiço no cristal da hora, e que parece o murmúrio de alegria das flores desabrochadas, o hino da sua felicidade, o eco dos seus odores suaves, a voz dos cravos brancos, do tomilho, da manjerona, não se sabe se é ouvido por elas. Tem contudo uma gama completa de sons que nós próprios discernimos e que vai da felicidade completa  à ameaça, à cólera e à aflição; tem a ode da rainha, as canções da abundância, os salmos da dor; tem finalmente os longos e misteriosos gritos de guerra das princesas adolescentes nos combates e das carnificinas que precedem ao voo nupcial. Será uma música do acaso que não aflora o seu silêncio interior? É contudo certo que elas se não perturbam com os ruídos que fazemos à roda dos cortiços, mas talvez pensem que estes ruídos não pertencem ao seu mundo e não tem interesse algum para elas. É verossímil que pelo nosso lado, nós não ouçamos senão uma parte mínima do que elas dizem e que imitam uma quantidade de harmonias que os nossos órgãos não são feitos para  perceber.  em todo o caso vemos que elas sabem compreender-se e combinar-se muitas vezes com uma rapidez prodigiosa, e, quando, por exemplo, o grande ladrão do mel, o enorme Sfinx Atropos, a borboleta sinistra que tem no dorso uma caveira, penetra no cortiço ao murmúrio dum encantamento irresistível que lhe é próprio, a nova circula de boca em boca e desde as guardas da entrada até às últimas obreiras que trabalham no interior, sobre os últimos favos, todo o povo estremece. 
                  Acreditou-se muito tempo que ao abandonarem os tesouros do seu reino, para se lançarem assim na vida incerta, as sábias moscas do mel, tão econômicas, tão sóbrias, tão previdentes habitualmente, obedeciam a uma espécie de loucura fatal, a um impulso maquinal, a uma lei da espécie, a um decreto da natureza, a esta força que para todos os seres está escondida no tempo que decorre. 
                 Quer se trate da abelha ou de nós próprios, chamamos fatal aquilo que não compreendemos. Mas hoje em dia já o cortiço nos revelou dois ou três dos seus segredos materiais e verificou-se que este êxodo não é nem instintivo, nem inevitável. Não é uma emigração cega, mas um sacrifício,que parece meditado, da geração presente à geração futura. Basta que o apicultor destrua nas células das jovens rainhas ainda inertes, e que ao mesmo tempo se as larvas e as ninfas são numerosas, aumente os entrepostos e os dormitórios da nação; logo de repente o tumulto improdutivo se acalma como as gotas de ouro duma chuva obediente, regressa ao trabalho habitual sobre as flores, e a velha rainha tornada indispensável, não esperando ou não tendo já uma sucessora, descansa sobre o futuro de atividade que vai exercer, renuncia a ver este ano a luz do sol. 
                  Retorna pacificamente nas trevas a sua tarefa materna que consiste em pôr, seguindo uma espiral metódica, de célula em célula, sem omitir uma única, sem nunca parar, dois ou três mil ovos por dia. 
                 Que ha de fatal em tudo isto senão o amor da raça de hoje pela raça de amanhã? Esta fatalidade existe também na espécie humana, mas o seu poder e a sua extensão são menores. Nunca produz estes sacrifícios totais e unanimes. A que fatalidade previdente que substitua esta, obedecemos nós? Ignoramo-lo e não conhecemos o ser que nos mira como nós miramos as abelhas. 
                                                                   *    *    * 
                 Quanto à afeição pessoal pela rainha, se é provável que exista, é também certo que a memória é curta, e se pretenderdes restabelecer no seu reino uma rainha exilada durante alguns dias ela será ali recebida de tal maneira pelas suas filhas que será necessário apressarmo-nos a arrancá-la ao encarceramento mortal que é o castigo das rainhas desconhecidas. É que elas tiveram tempo de  transformar em células reais uma duzia de habitações de obreiras, e que portanto o futuro da raça não corre já perigo algum. A sua afeição aumenta ou diminui segundo  a maneira porque a rainha representa este futuro.  Assim vê-se frequentemente, quando uma rainha virgem executa a cerimônia perigosa do voo nupcial, os seus súditos de tal modo assustados com receio de perdê-la que todos a acompanham nesta trágica e longínqua procura do amor de que mais adiante falarei, coisa que elas nunca fazem quando se teve o cuidado de lhes dar um fragmento de favo contendo as células da jovem postura onde se encontram a espera de criar outras mais. A afeição pode mesmo mudar-se em furor ou em ódio se a sua soberana não cumpre todos os seus deveres para com a divindade abstrata que nós chamaremos a sociedade futura e que elas concebem mais vivamente do que nós. Tem acontecido, por exemplo, que alguns apicultores, por diferentes razões, impedem a rainha de se juntar ao enxame retendo-a no cortiço com o auxílio de uma rede, através da qual as obreira finas e ágeis passam sem dar por isso, mas que a pobre escrava do amor, notadamente mais pesada e mais corpulenta que suas filhas, não consegue atravessar. Na primeira saída as abelhas, vendo que ela as não tinha voltam ao cortiço e ralham, dão encontrões e maltratam a desgraçada prisioneira, que sem dúvida acusam de preguiçosa ou supõem um pouco fraca de espírito. Na segunda saída, parecendo evidente a sua má vontade, a cólera aumentava e as serviçais tornavam-se mais sérias. Enfim, à terceira saída, julgando-a imediatamente infiel ao seu destino e ao futuro da raça, quase sempre a  condenam e a metem na prisão real. 
                  Como se vê, tudo está subordinado a este futuro com uma previdência, uma  harmonia, uma inflexibilidade, uma habilidade ara interpretar as circunstâncias e para tirar partido delas que enchem de admiração quando se tem em conta todo o imprevisto, todo o sobrenatural que nossa intervenção recente espalha sem cessar nas suas habitações. Dir-se-á talvez que naquele último caso elas interpretaram bem mal a impotência da rainha em seguir.  Seríamos nós mais perspicazes se uma inteligência de uma ordem diferente e servida por um corpo tão colossal que os seus movimentos fossem tão impenetráveis como os de um fenômeno natural se estivesse a armar-nos  armadilhas do mesmo gênero? Não levamos alguns milhares de anos para inventar uma interpretação do raio suficientemente plausível? Toda a inteligência é atacada de lentidão quando sai da sua esfera que é sempre pequena e quando se encontra em presença de acontecimentos que não pôs em ação. Além disso não sabemos se, dado que a prova da rede se generalizasse e prolongasse, as abelhas não acabariam por a compreender e por obviar aos seus inconvenientes. Já tem compreendido muitas outras provas e tirado delas o partido mais engenhoso. A prova dos "favos moveis", por exemplo, ou a das "seções", onde são obrigados a armazenar o seu mel de reserva em pequenas caixas simetricamente empilhadas, ou ainda a prova extraordinária da cera favada onde os alvéolos não são esboçados senão por um delgado filete de cera, cuja utilidade elas compreendem imediatamente e que estendem com cuidado de maneira a formar, sem perda de substância nem de trabalho, células perfeitas.  Não descobrem elas, em todas as circunstâncias que não se apresentam debaixo da forma de uma armadilha feita por uma espécie de Deus maligno e astucioso, a melhor e a única solução humana?  Para citar uma dessas circunstâncias naturais, mas completamente enormes, se um caracol ou um rato se introduzir no cortiço é morto, que farão elas para desembaraçar do cadáver que cedo envenenaria a atmosfera se lhes é impossível expulsá-lo ou cortá-lo? fecham-no metódica e hermeticamente num sepulcro de cera que se levanta extravagantemente entre os monumentos ordinários da cidade. Encontrei o ano passado num dos meus cortiços uma aglomeração de três destes túmulos separados como os alvéolos dos favos por paredes meias de maneira a economizar o mais possível a cera. Os prudentes coveiros tinham-nos construído sobre os restos de três pequenos caracóis que uma criança tinha introduzido no seu falanstério. De ordinário quando se trata de caracóis contentam-se em cobrir de cera o orifício da concha. Mas desta vês, como elas estivessem mais ou menos quebradas ou fendidas, julgaram mais simples sepultá-los  todos; e para não embaraçar o vai e vem da entrada tinham feito nesta mole incômoda um certo número de galerias exatamente proporcionadas não ao seu tamanho, mas ao dos machos que são aproximadamente duas vezes maiores do que elas. Tem um sentimento extraordinário das proporções e do espaço necessário para um corpo se mover. Nas regiões onde pulula a horrível "Acherontia Atropos" constroem na entrada dos cortiços colunas de cera entre as quais o ratoneiro noturno não pode introduzir o seu enorme abdômen. 
                 Basta sobre este ponto; não acabaria se quisesse dar todos os exemplos. Para resumir o papel e a situação da rainha pode-se dizer que ela é o coração escravo da cidade, cuja inteligência a rodeia. Ela é a soberana única, mas também é a criada real, a depositária cativa e a delegada responsável do amor. O seu povo a serve e a venera, não esquecendo contudo que não é à sua pessoa que se submete, mas à missão que cumpre e aos destinos que representa. Ter-se-ia grande dificuldade em encontrar uma república humana cujo plano compreendesse uma porção tão considerável dos desejos do nosso planeta, uma democracia onde a independência fosse ao mesmo tempo mais perfeita e mais racional, a submissão mais completa e mais razoável. Mas não se encontro nenhuma em que os sacrifícios fossem mais duros e mais absolutos. Não vão acreditar que eu admiro estes sacrifícios como admiro os seus resultados; seria evidentemente desejável que estes resultados se pudessem obter com menos sofrimento, menos renúncia. Mas uma vez aceite o princípio, e talvez seja ele necessário ao pensamento do nosso globo - a sua organização é admirável. Qualquer que seja sobre este ponto a verdade humana, a vida no cortiço não é olhada como uma série de horas de que é prudente não assombrar senão as horas necessárias à sua manutenção, mas como um grande dever comum e severamente dividido para com um futuro que recua sem cessar desde o começo do mundo. Cada um renuncia para ele mais da metade da sua felicidade e dos seus direitos. A rainha diz adeus à luz do dia, ao cálice das flores e à liberdade; as obreiras ao amor, a quatro ou cinco anos de vida e à doçura de serem mães. A rainha vê o seu cérebro reduzir-se a nada em proveito dos órgãos de reprodução, e as obreiras vêem estes mesmo órgãos atrofiar-se em benefício da sua inteligência. 
                 Não seria certamente justo sustentar que a vontade não toma parte alguma nestas renúncias. É verdade que a obreira não pode mudar o seu próprio destino, mas ela dispõe do de todas as ninfas que a rodeiam e que são suas filhas indiretas. Já vimos que cada larva de obreira, se fosse alimentada e alojada segundo o regime real, podia tornar-se rainha; e que cada larva real, se se mudasse o seu alimento e se se diminuísse a sua célula, seria transformada em obreira. Estas prodigiosas eleições operam-se todos os dias na sombra dourada do cortiço. 
               No momento em que é dado o sinal ao enxame, dir-se-ia que todas as portas da cidade se abrem com uma força súbita e insensata, e a multidão negra sai ou  antes arremessa-se segundo o número das aberturas num jato direto duplo, triplo ou quadruplo, vibrante e ininterrupto, que se eleva imediatamente no espaço numa rede sonora tecida com cem mil asas exasperadas e transparentes. Durante alguns minutos a rede flutua por cima do cortiço num prodigioso murmúrio de sedas diáfanas que mil e mil dedos eletrizados rasgassem e cosessem sem cessar. Ondula, hesita, palpita como um véu de alegria que mãos invisíveis suspendessem no céu, onde se diria que elas o dobram e desdobram desde as flores até ao azul, esperando uma chegada ou uma partida augusta. Enfim um dos panos abaixa-se, o outro eleva-se, juntam-se os quatro cantos cheios de sol do radioso manto canoro, e este, semelhante a uma dessas toalhas inteligentes que, para satisfazer um desejo, atravessam o horizonte nos contos de fadas, dirige-se inteiro e já fechado a fim de cobrir a presença sagrada no futuro da tília, a pereira, ou o plátano onde a rainha se fixou como um prego de ouro a que o manto vai suspendendo uma a uma as suas musicais e à volta do qual ele enrola o seu estofo de pérolas todo iluminado com asas. 
                Em seguida renasce o silêncio; e este vasto tumulto e esse terrível véu que parecia tecido de inumeráveis ameaças, de inumeráveis cóleras, e essa endurecedora chuva de ouro que sempre em suspensão retinia sem cessar sobre todos os objetos ao redor, tudo isto se reluz num minuto a um grande cacho inofensivo e pacífico suspenso num ramo de árvore e formado de milhares de pequenos bagos vivos que esperam pacientemente a volta dos exploradores que partiram à procura de um abrigo.  
                O apicultor espera que a massa esteja bem aglomerada e depois, com a cabeça coberta com um grande chapéu de palha (porque a abelha mais inofensiva espeta inevitavelmente o ferrão quando se embaraça nos cabelos, onde percebe estar presa estar presa numa armadilha) mas sem máscara e sem véu, se tiver experiência, e depois de ter mergulhado em água fria os braços nus até aos cotovelos, recolhe o enxame sacudindo vigorosamente por cima de um cortiço voltado  para o ramo que o sustenta. O cacho cai pesadamente como um fruto maduro. Se o ramo é muito forte, colhe o enxame com uma colher e põe, em seguida, as colheradas vivas onde quiser como faria o trigo. Não tem nada a temer das abelhas que zumbem em volta dele e que lhe cobrem as mãos e o rosto. Escuta o seu canto de embriaguez que não se parece nada com o seu canto de cólera. Não há a temer que o enxame se divida, se irrite, se dissipe ou fuja. Já o disse, neste dia as obreiras misteriosas  tem um espírito de festa e de confiança que nada poderia alterar. Separaram-se dos bens que tinham a defender e já não reconhecem os seus inimigos. São inofensivas à força de serem felizes e são felizes não se sabe porque; cumprem a lei. Todos os seres tem assim um momento de felicidade cega que a natureza lhes concede quando quer chegar aos seus fins. Não nos admiremos que as abelhas se deixem enganar por ela; nós mesmos, que há tantos séculos a observamos com o auxílio de um cérebro mais perfeito do que o seu, também somos enganados por ela e ignoramos se é benevolente, indiferente ou perversamente cruel. 
                  O enxame ficará onde a rainha caiu, e se só ela caísse no cortiço, logo que a sua presença fosse assinalada, todas as abelhas em filas negras dirigiriam seus passos para o retiro materno; e enquanto a maior parte delas ali penetra à pressa, uma chusma de outras, parando um instante no limiar das portas desconhecidas, formam círculos de alegria solene com que costumam festejar os acontecimentos  felizes. "Tocam a chamada" dizem os aldeões. No mesmo instante  o abrigo inesperado é aceite e explorado nos seus menores esconderijos; a sua posição, a sua forma, a sua cor são reconhecidas e inscritas em milhares de pequenas memórias prudentes e fiéis. Os pontos de referência dos arredores são cuidadosamente notados, a cidade nova existe já por inteiro no fundo das suas imaginações corajosas, e o seu lugar está marcado no espírito e no coração de todos os seus pequenos habitantes; ouve-se soar dentro dos muros o hino do amor da presença real, é o trabalho que começa. 
                Se o homem não o apanha, a história do enxame não termina aqui; fica suspenso no ramo até a volta das obreiras que fazem o ofício de batedores ou forrageadores alados, e que depois dos primeiros minutos da saída do enxame se dispersam em todas as direções à procura de um abrigo. 
                 Voltam estas uma a uma, dão conta da sua missão, e,  como nos é impossível penetrar o pensamento das abelhas,é necessário que interpretemos humanamente o espetáculo a que assistimos. É pois provável que escutem com atenção os seus relatórios. Uma delas aparentemente preconiza uma árvore oca outra louva as vantagens de uma fenda num muro velho, ou cavidade numa gruta, ou uma toca abandonada. Acontece muitas vezes que a assembléia exita e delibera até o dia seguinte de manhã. Enfim, a escolha fez-se e estabeleceu-se o acordo. Nm dado momento todo o cacho se agita, formiga, desagrega-se, e num voo impetuoso, que  desta vez não conhece obstáculos, por cima das sebes, dos campos de trigo, dos campos de linho, dos poços, das vilas, dos rios, a nuvem vibrante dirige-se em linha reta para um alvo determinado e sempre longínquo. É raro que o homem a possa seguir nesta segunda etapa. Voltou à natureza, e perdemos a pista do seu destino. 

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BIOGRAFIA 
                Maurício Maeterlinck, escritor belga, nasceu em Gand em 1862. Estreou com a coleção de poesias Les Serres chaudes, 1889. Escreveu várias obras teatrais em que prima na descrição do que há de obscuro, vago e inquietante na vida inconsciente. Entre elas contam-se: La Princesse Maleine, 1889; L'Intruse, 1890; Les Aveugles, 1891; Les Sept Princese, 1891; Pelleais et Mélisandre, 1892; Aglavaine et Selysette, 1896. Das suas outras obras devem citar-se: Trésor des humbles, 1896; La Sagesse et la Destinée, 1898; La Vie des Abelles, 1901, livro encantador, de um escritor engenhoso e de um poeta. 
Nicéas Romeo Zanchett 
        
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AS ABELHAS TRABALHANDO 
Por Bucellai
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Só conhecem deveras as abelhas 
O piedoso amor das pátrias suas.
Esta cuidadosas receando o inverno, 
Ad'adivinhadoras dos horríveis tempos, 
Todo o inteiro verão dão-se às fadigas, 
Pondo em comum reserva os os seus adquiridos
Para gozar e se nutrir no inverno, 
Umas entorno procurando o victo 
Pelo convale herboso e florescente, 
Andam vagando, repartindo o tempo. 
Outras, nas cascas hórridas, cavadas, 
O lacrimoso humor do alvo narciso
E a pegajosa cola no pequeno
Seu seio vão das cascas recolhendo, 
Lançam com o pés do favo os alicerces, 
Aos quais vão suspendendo a tenaz cera,
E os muros puxam, e no alto dos tetos. 
Outras ha pouco miudinhos ovos, 
Colhidos em verdura e lindas flores, 
Com calor chocam temperado o lento; 
Outras do novo parto cuidadosas
Os nascidos filhinhos, que mal movem-se, 
Com a língua compõem, e com o seio 
Os outrem da suave ambrosia e clara; 
Outras, os já um tanto crescidinhos,
Única esperança dos avitos reinos, 
Conduzem fora, e com o seu exemplo
Lhes mostram doces águas, largos pastos
E qual convém fugir, qual ir seguindo; 
Outras depois presagas dessa fome, 
Que o hórrido rigor  do inverno causa, 
Estivam puro mel dentro das celas. 
Algumas há às incumbe a sorte
Guardar as portas; e ali ficam elas
Revezando, a espreitar qual vai o tempo
Por esse imenso vão do aéreo globo, 
Onde se formam e desmancham sempre
Sereno, nuvens, bela calma e vento; 
Ou para as cargas receber, e os graves
Feixes tirar de quem do campo torna
Curvado e baixo sob os grandes pesos; 
E muitas vezes juntam-se em fileira
E expelem os zangões dos seus presepes, 
Armento ignavo e que não quer fadiga.
Torna-se aquela obra assim fervente, 
E em qualquer parte o mel cheiroso exala
Suavíssimo odor de flor de timo. 
Como os grandes Ciclopes em a forja 
Horrendos raios fabricando a Jove,  
Algumas com tenaz firme seguram
Por duas mãos a encandecida massa, 
E vão virando sobre a firme incude; 
Outros, altos levando ambos os braços. 
Batem-na a tempo com horríveis golpes; 
Bovinas peles outros ora alçando
E ora abaixando, mandam fora o sopro
Forte, que zune nos carvões acesos; 
Outros, quanto mais ferve e mais cintila,
 Metem a massa nas geladas ondas, 
Endurando a rijeza ao ferro agudo; 
E assim ribomba o cavernoso monte, 
E a Sicília e a Calábria vão tremendo; 
Não fazem de outra forma as abelhinhas, 
Se é lícito animais tão pequeninos
Assemelhar aos máximos gigantes 
Cada qual delas cuida em seu trabalho, 
As mais velhas, mais sábias, tem cuidado
De altas torres munir, fazer reparos, 
E por telhados nas industriais casas, 
As rachadas paredes rebocando
Com o sumo do orégão e do aipo
Cujo sabor, como mortal veneno, 
Mui foge o escarabeu, foge a toupeira, 
A toupeira que cega a Malga adora; 
Foge o besouro e a formiga alada, 
A cantarida verde e a borboleta, 
Mais que todo animal inimigo à abelha;
E os monstros mil, quer répteis, que alados,  
Que, à humanidade os calores corrompendo, 
Nivia no mundo a Natureza cria. 
Voltam após à noite aos seus alvergues
As menores cansadas, seio e pernas
De odorosa hortelã e timo cheias. 
Nutrem-se de geleias, rosmaninhos, 
Lentos algueiros, tremulantes, canas; 
De poejo e da flor linda e azulada, 
Que entre as pétalas suas encerra o croco, 
E da vitoriosa e forte palma; 
Do terebinto, da aroeira humilde, 
à qual só deve Cio as suas gomas; 
Do languido jacinto, que no seio
Pintado traz a sua dor amarga; 
E de outros mil arbustos, ervas, flores, 
Dos quais o carvalho líquido (que perlas 
Parece à vista sobre ouro e safiras)
Chupando este bonito animalzinho, 
Dá cor e cheiro ao mel, ou sabor dá-lhe. 
Todas tem um trabalho, um só descanso. 
Saindo de manhã fora das portas, 
Nunca cessam até que o céu se enfusque. 
Porém, quando seus astros ele acende, 
Voltam à casa, e dos suados victos 
Os seus alentam fatigados corpos. 
Sente-se a bulha e o murmurar frequente
No vestíbulo entorno dessas portas. 
Mas depois de fechadas em seus quartos, 
Comodamente ali vão descansando
Com grão silêncio até o novo dia; 
E o sono efunde em seus cansados membros
Profundo, suavíssimo sossego. 
E jamais do palácio elas se afastam, 
Se o ar reparam tenebroso e escuro, 
Ou se o Sol o chuvoso arco nas nuvens
Pinta, ou se murmurar ouvem as folhas, 
Preságios certos de tormenta e chuva; 
Mas cautas vão da sua casa em roda
Água buscar às mais propínquas fontes, 
C'umas pedrinhas que consigo trazem
Librando-se ao ar; e com grande arte 
As nuvens vão cortando e o móvel vento, 
Como se fossem barcos sobre as ondas 
Aos quais firmes mantém do lastro o peso. 
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BIOGRAFIA DE BUCELlAI 
                João Bucellai, poeta e dramaturgo italiano, nasceu em Florença a 20 de Outubro de 1475. O melhor dos seus poemas é Le Api, (As abelhas), o qual foi publicado primeiramente em Roma em 1539. Entre as outras suas obras há duas tragédias Orestes e Rosamunda. Morreu em 1526.  



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